terça-feira, 17 de novembro de 2015

Hugo Gonçalves no seu melhor

Share
Crónica deliciosa de quem conhece e ama o Rio.

"E o Rio, continua lindo?
Na Rua 3 do Vidigal, a TV no bar do Carlão mostra os jogos internacionais e os moleques suspendem a peladinha sempre que passa um mototáxi, o cheiro da gasolina tornando a humidade e a doçura da clorofila ainda mais pegajosas. O bar do Carlão: um barraco forrado a gordura e ferrugem, que serve hambúrgueres filé-minhau e onde a melodia do comentador desportivo, cantada nas colunas do plasma, parece narrar a peladinha dos moleques como se fosse uma final do campeonato do mundo. Lá em baixo, o mundo além da favela: o areal do Leblon ao Arpoador, o calçadão e a classe média-alta em movimento, uma fluidez erótica protagonizada por quem corre, pedala ou desliza num skate com pernas de caramelo e pele de muitos cremes franceses. Lá em cima: o morro Dois Irmãos, todo pedra e mato, Mordor dos cariocas, onde as nuvens se aninham como a namorada pós-orgásmica num motel. E, claro, um radiozinho a tocar algures em cada casa, quiosque, boteco, ônibus, a banda sonora da cidade entrecortada por buzinas, pregões, xingamentos e cantadas: "Me chama de previsão do tempo e diz que tá rolando um clima."
É tão fácil romantizar o Rio de Janeiro, encaixá-lo na esquadria do cartão-postal onde até adolescentes com metralhadoras na boca de fumo parecem figurantes de uma gigante produção, uma Cinecittà tropical-carnavalesca onde tudo vai dar certo. Mas, ao fim de quatro anos a morar no Rio, eu já não era um espectador embevecido com a exuberância. Mais larva do que borboleta, fui adicionado aos cariocas acostumados a levar porrada da cidade: atropelamentos, ônibus incendiados, falcatruas, má-educação, um polícia ou um bandido de dedo leve no gatilho, políticos que pagam a traficantes para conseguir o voto das populações, os que mandam e os que cumprem protagonizando a versão 2.0 das relações esclavagistas, a ganância e a indiferença fundindo-se num manual de antiajuda.
Henrik Jönsson, correspondente sueco, há dez anos no Rio, chama-lhe brazilian blues, a malária psicológica dos gringos: depois do arrebatamento, o coração machucado. Henrik contou-me como uma amiga estrangeira, com um forte caso de brazilian blues, preferiu fechar-se em casa, refugiando-se na música, atravessando o Brasil de Pixinguinha a Crioulo.
Quando, para mim, o samba se transfigurou em blues, recorri aos livros, os mesmos que tinham contribuído para ficcionar a paixão de viver no Rio: o Centro da infância de Rubem Fonseca, o Carnaval de Ruy Castro, as paixões sanguíneas de Nelson Rodrigues ou todas as possibilidades novelescas das mulheres cariocas de Sérgio Porto. Não que estes autores não tratassem a realidade, mas faziam-no sobre um tempo que deixou de existir, usando um diretor de fotografia e o apuro da ficção. Já dizia alguém: a realidade é um bom sítio para visitar, mas eu não moraria lá.
Só meses depois do regresso a Lisboa voltei a acreditar em Tim Maia quando canta Que Beleza ou em Paulinho da Viola esperando Para Ver as Meninas. Essa reconciliação com o Rio selou-se com a leitura de O Drible, de Sérgio Rodrigues, um romance alegadamente sobre futebol, mas que, sem esquecer a realidade - o racismo, o classismo, a putaria, a família, as rodas dentadas da existência carioca -, me devolve o Brasil pelo qual me enamorei. E não é apenas o magnífico uso de um português tão dilatado como preciso, cheio de entranhas e sinapses, ou as passagens sobre Gleyce Kelly (sic), a empregada de balcão e namoradinha de um dos protagonistas - "rosto bochechudo de Goldie Hawn esquecida no forno (...) tatuagem em seu ombro: um Bob Esponja da cor dos seus cabelos, sorriso débil mental arreganhado". Mais que tudo, é essa ideia de que há certos livros que têm a vida inteira entre a capa e a contracapa, neste caso, e a pretexto do futebol, o Brasil: o colosso complexo, bipolar, viciado em emoção, antes desdentado, agora de aparelho nos dentes, tão rico e tão pobre.
No final da vida, Murilo, personagem central do livro, um ex-cronista de futebol, Dickens carioca, e comedor colecionista de mulheres, procura entender o Brasil como eu sempre tentei, embora, ao contrário de mim, o país inteiro cavalgue no seu sangue épico, trágico e cómico: "Como fazer dessa suprema sacanagem, desse puteiro a céu aberto, um país? Impossível, você diz. Parecia mesmo, parecia? Aí alguém arranjou uma bola (...) outro maluco pegou no microfone e logo estava embelezando as jogadas mais toscas com umas retumbâncias ridículas de retórica. Pronto: metade futebol, metade prosopopeia, estava feito o Brasil."
Não sei se este livro serve como resposta derradeira para tamanha pergunta, mas sei que me apeteceu voltar a dizer, mesmo que saiba do risco da mentira: o Rio, meu irmão, continua lindo."
Hugo Gonçalves - Máquina de escrever
Diário de Notícias
31 de Outubro 2015

Sem comentários:

Enviar um comentário