quinta-feira, 14 de julho de 2011

Mais duas crónicas magníficas de Arnaldo Jabor no Estadão

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''A obra de arte tem de ser imperfeita''
07 de junho de 2011 | 0h 00
Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo
Outro dia, o Nelson Rodrigues baixou em mim. De vez em quando, eu o psicografo. É impressionante como escrevo rápido quando o espírito de Nelson me toma. Escrevo com a liberdade de não ser "eu". Talvez seja por isso que F. Pessoa inventou heterônimos para se sentir livre da cangalha do "eu".
Muitos jovens me perguntam: "Afinal, quem foi o Nelson?"
Não sabem direito. Ficou apenas a vaga lenda de "pornográfico" ou até de "fascista" por ter puxado o saco do ditador Médici (lembram?) para tirar seu filho da prisão. Não conseguiu, mas ganhou a pecha "de direita" por ter criticado futuros mensaleiros e pelegos, os "marxistas de galinheiro", como ele os chamava, pois intuiu claramente, na época, que a ideologia que "absolve e justifica os canalhas" era apenas o ópio dos intelectuais.
Eu mesmo sofri por causa dele. Em 1973, ousei filmar Toda Nudez Será Castigada e dei uma entrevista na Veja em que dizia que "fascismo é amplo: existe fascista de direita e de esquerda também". Pra quê? Os patrulheiros ideológicos mandaram um manifesto ao Jornal do Brasil, onde me esculhambavam indiretamente, dizendo que o sucesso imenso que o filme fazia "não era a missão política do cinema novo". Foi das grandes dores que senti, pois até amigos assinaram o maldito texto, que só não foi publicado porque, um dia antes, os generais tiraram o filme de cartaz, com soldados de metralhadora, levando as cópias dos cinemas porque, dizia o chefe da Censura: "Ele faz apologia do homossexualismo..."
Aí, meus "amigos" comunas desistiram do texto "para não dar razão ao inimigo principal", que era a ditadura. Eu e Nelson éramos "inimigos secundários", para usar a língua de Mao Tsé-tung. Isso é verdade e nunca contei aqui. Doeu, mas já passou.
Aí, o filme voltou a cartaz porque ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim; os generais ficaram com medo da repercussão internacional (imensa) e liberaram meu filme, baseado numa peça do "fascista pornô". Mas a importância de Nelson continua subestimada.
Hoje, a "pornopolítica" tomou conta de tudo e Nelson é que tem fama de "pornográfico" - logo quem: um moralista que corava diante de um palavrão. Nelson é muito mais. Filho do jornalismo policial, formado nas delegacias sórdidas, vendo cadáveres de negros plásticos, metido no cotidiano "marrom" do jornal do pai, Nelson flagrou verdades imortais que estavam ali, no meio da rua, na nossa cara, e que ninguém via.
Consideram-no o maior dramaturgo do País, sem dúvida, mas não o colocam no pódio da literatura culta, ao lado de gente como Guimarães Rosa, por exemplo, que o irritava muito: "Jabor, diga-me pelo amor de Deus, qual a profundidade da frase "Viver é muito perigoso"?" Ou: "A gente morre para provar que viveu...?" Nelson implicava com a pose do Rosa.
Uma vez, ele me disse ao telefone que o "problema da literatura nacional é que nenhum escritor sabe bater um escanteio". É luminoso.
Outra vez, ele falou: "Se Deus me perguntar se eu fiz alguma coisa que preste na vida, eu responderei a Deus: "Sim, Senhor, eu inventei o óbvio!""
Sua literatura nos ensina o óbvio e isto é muito profundo numa literatura eivada de engajamentos "corretos" ou de intenções formais rocambolescas. Gilberto Freyre sacou sua "superficialidade profunda", assim como André Maurois entendeu que a genialidade de Proust era justamente "a épica das irrelevâncias..." E isto é muito saudável, num país onde ninguém escreve um bilhete sem buscar a eternidade. Nelson é um escritor contemporâneo.
Até hoje, muita gente não entendeu que sua grandeza está justamente na sincronia com os detritos do cotidiano. A faxina que Nelson fez na prosa é semelhante à que João Cabral fez na poesia.
Nelson baniu as metáforas a pontapés "como ratazanas grávidas" e criou o que podemos chamar de antimetáforas feitas de banalidades condensadas. Suas comparações sempre nos remetem a um "mais concreto". Shakespeare tinha isso, Cervantes, também. E algumas crônicas de Nelson são superiores a muitas peças.
Suas frases famosas jamais aspiravam ao "sublime": "o torcedor rubro-negro sangra como um César apunhalado", "a mulher dava gargalhadas de bruxa de disco infantil", "em seu ódio ele dava arrancos de cachorro atropelado", "seu peito se encheu de heroísmo como anúncio de fortificante", "a bola seguia Didi com a fidelidade de uma cadelinha ao seu dono", "a virtude é bonita, mas exala um tédio homicida; não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera", "o sujeito vive roendo a própria solidão como uma rapadura", "somos uns Narcisos às avessas que cuspimos na própria imagem".
Ele me dava lições de arte e literatura: "Enquanto o Fluminense foi perfeito, não fez gol nenhum. A partir do momento em que o Fluminense deixou de ser tão elitista, tão Flaubert, os gols começaram a jorrar aos borbotões. E aí vem a grande verdade: "A obra-prima no futebol e na arte tem de ser imperfeita". Isso. Contemporâneo e minimalista, via, como Oswald, que a poesia está nos fatos, no vatapá no outro e na dança - "o que estraga a obra de arte é a unidade".
A lição política de Nelson é: o Brasil não se salvará com planos messiânicos ou ideias gerais de "epopeias de Cecil B. de Mille", sejam elas epopeias operárias ou epopeias neoliberais.
Nelson, sem cultura política nenhuma, profetizou que os atos "indutivos", as providências parciais eram muito mais importantes que generalidades utópicas e "dedutivas". O "óbvio ululante" é limpar a casa e cuidar do detalhe, do enxugamento do Estado, "chupando a carótida dos chefes das estatais como tangerinas" quando se mostrarem ladrões ou favorecendo correligionários, como vemos todo dia.
Nossa opinião pública está muito mais informada hoje, mas ainda é precária e desinformada. Como ele dizia: "Consciência social de brasileiro é medo da polícia". Até hoje.

A única vez que vi João Gilberto
14 de junho de 2011 | 0h 00
Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo
João Gilberto fez 80 anos na sexta-feira passada, mas eu só o vi pessoalmente uma vez. Foi 17 anos atrás, no ensaio de um show no Ibirapuera (acho que era aniversário de São Paulo). Eu tinha virado jornalista, depois que o Collor acabou com o cinema em 1991, e me mandaram fazer uma reportagem sobre a preparação do show. E lá fui eu, na noite fria do parque, esperar João Gilberto chegar, enquanto o palco era montado. Já contei isso, na época, mas "vale a pena ler de novo".
Vinte e três horas. Começa um boato de que João não virá para o ensaio nesta noite ventosa, angustiando tietes e organizadores que esperam ver/ouvir aquele "homem-suspense", com seu jeito eclesiástico, seu ar de professor de ética, que, aliás, sempre me provocou uma sensação de culpa: "Estarei errado, comparado ao rigor artístico de João?" De certa forma, todos estamos.
Aí, chega a terrível notícia: João não virá! Mas, mesmo assim, ninguém arreda o pé. João provoca uma espécie de fé nas pessoas, que o esperam ali, entre carpinteiros malhando o cenário e uivos das caixas de som. Espera-se esse homem com a fome de alguma revelação.
Eis que, à meia-noite em ponto, faz-se um grande silêncio no parque: João Gilberto materializa-se no palco! Surgiu do nada. Ao seu lado, o irmão Vavá e o amigo do peito Krikor Tcherkessian, armênio delirante que tem arranques de paixão com a música brasileira.
E aí, percebo que o ensaio e o show do dia seguinte são partes de um fio só, não interrompido. Ninguém fala mais; um carpinteiro sussurra ao diretor Fernando Faro: "Posso bater este prego?" "Pode..." As marteladas vêm aveludadas, tímidas, respeitosas e param. João lança a voz pela noite como os primeiros traços de um quadro numa tela negra. Sua música é a pura modulação do silêncio que se instalou. Ele começa Canta Brasil. Todos se imobilizam - Daniela Thomas, emocionada, pinta cores de Matisse no cenário; a equipe de Walter Salles Jr., que filma o evento, comunica-se por telepatia e as câmeras flutuam como "ETs" mudos. Eu olho João mais de perto e vejo que ele veste calças jeans, paletó marrom e tênis branco marca Pé de Atleta e vejo intrigado que seu irmão Vavá, calvo e ungido como um frade, também usa tênis Pé de Atleta. Sinto que ali estava um indício precioso para desvelar um pouco do seu cotidiano tão misterioso. Por que Pé de Atleta? Terão os irmãos comprado tênis brancos, em doce fraternidade do dia a dia? O tênis branco fazia João mais real.
Subitamente, ele se levanta e, pisando macio no tênis, mergulha na escuridão do parque, para ouvir o teste de som, do outro lado da praça, a mais de cem metros. Corro atrás, como bom repórter principiante.
E aí, começa o mágico momento do encontro: eu, trêmulo, no meio das folhagens do parque, descubro deslumbrado que ele me conhece: "Oh... Arnaldo... Arnaldo... vejo você na televisão..." Só minha mãe me chamava de Arnaldo e, agora, seu filho, mamãe, estava ao lado do mito. Os testes do som vinham do palco e João me pergunta: "Arnaldo... (ele parecia ter prazer em escandir as sílabas meio humorísticas de meu nome), Arnaldo, que você está achando do som?"
Eu arrisco: "Os graves estão reverberando e há um vazio..." João concorda, de estalo: "É isso! Tem um vazio... Falta qualquer coisa! Tens razão, Arnaldo; a frase tem início e fim, mas não tem meio! O som não tem meio. Ouve: "Essa mulata quando dança é luxo só" - a gente ouve "mulata e só"..."
João se vira para os técnicos: "Falta o meio do som..." O chefe arrisca uma explicação tecnopoética de que o vento esgarça o som e que, no dia seguinte, no calor dos corpos da praça cheia, o som ficará denso.
Súbito, João já está no microfone (a memória me vem por cortes bruscos) e começa a cantar Ronda, de Paulo Vanzolini, que vira um gemido clássico sobre a solidão absoluta e eis que surge Rita Lee no escuro da noite ("O que vou cantar não sei... quebrei o braço; foi o tombamento do Ibirapuera... ah ah...") e senta num canto do palco enquanto Krikor soluça em meu ouvido: "Ele é o Pelé da música... o mundo o ouve de joelhos!" Aí, chega o Caetano de um show no Anhangabaú e se junta discretamente a todos que ali se movem, ciciando, com passos camuflados. Tenho vontade de perguntar: "Há perigo?.." Há, sim, há o perigo de se quebrar a fina lâmina do silêncio, de desagradar a João.
Mas, ele está agora eufórico, cantando em falsete caricato o Dobrado de Amor a São Paulo, de Vinicius e Haroldo Tapajós, com o conjunto Quatro por Quatro. Depois, quando João canta Lua Cheia, todos já estão imóveis, como se o João fosse um passarinho que pudesse voar. Alguém me segreda: "Acho que o show já é só isso; amanhã ele nem vem..."
Mas, logo depois Caetano, meio tímido, passa Coração Vagabundo, que João repassa mais lento e mais baixo e Coração Vagabundo vira um réquiem e Rita Lee canta "cola teu rosto no meu rosto" e João emenda com Nada Além e o "além" soa como se João conhecesse o "país não descoberto" que vem depois da morte.
Enquanto isso, eu penso, aflito: "Perguntar o que, ao João?" Mas, só me ocorrem banalidades, toda ideia me parece rasteira, vulgar. Nervoso, decido perguntar algo que me revele mais segredos do cantor misterioso, algo "essencial", de que os tênis brancos Pé de Atleta talvez já fossem uma pista.
De repente, vejo que João está indo embora. Apavorado, corro atrás dele, sem saber o que lhe perguntar: música, vida pessoal, política? Paro ao seu lado: "E aí, João?" Ele sorri, esperando. Atrapalhado, me sai pela boca a tal "pergunta essencial": "E aí, João... ah... ah... para onde vai o Brasil?" Ele faz uma pausa, me olha fundo e diz: "Você sabe, Arnaaaaldo...." e some na noite.
João sabia o rumo do País e, bom sinal, não parecia preocupado.
Quando ele se foi, rompeu-se o silêncio, restaurou-se a realidade e alguém berrou aliviado: "Vamos comer num japonês!?"
Foi a única vez que estive com João Gilberto, em 80 anos.

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