segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Transa Atlântica

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"Paraísos artificiais. Cheguei à praia. Fiquei a olhar cá de cima, do calçadão, antes de descer os degraus frente à bandeira verde-rosa. Veio o Panela.
"Oi gata." "Oi Panela." "Cadeirinha, gata?" "Cadeirinha, Panela." As pessoas falam assim na vida real.
Despi o vestido, que dobrei e deixei em cima das havainas, ao lado da cadeira. Tirei a canga da sacola, arrumei os fios do biquíni, prendi os cabelos e finalmente sentei-me a beber um mate e a ler a biografia de Leonard Cohen. É que nunca se sabe quando um intelectual pode aparecer. Ali fiquei incapaz de me concentrar. Duas sapatonas chegaram logo depois. Fazendo com que tivesse de ler quarenta vezes uma definição qualquer de tesão, muito mais esotérica do que a anterior de Antônio Houaiss, totalmente concentrada na barriga da que estava deitada ao meu lado e que eu espiava por trás dos meus óculos Ray Ban.
Desconfiadas - não é normal para mulheres do Leblon ler livros destes, na praia, nem em lado nenhum -, levantaram-se e foram ao mar. Fiquei a olhar para a bunda da bonitérrima. Fechei o livro e pensei: Meu Deus, como eu odeioarte contemporânea, ainda está para chegar o homem capaz de me convencer de que três cocos metidos dentro de uma lata é arte. Salvé, Grande Gullar. Fui atrás delas e mergulhei. Mas não sem antes me benzer. Era assim que eu era. E debaixo de água não se pensa em nada."
(...)
"Sair de um amor é triste e aborrecido e cafona. Dói em todo o lugar, até naqueles onde nunca imaginamos ter nervos disponíveis, por exemplo, a mim doeu-me nos dedos dos pés, naqueles meses de Verão, em que chegar à praia ao meio-dia é coisa de gringo. Também me doíam os glúteos quando bicicletava até ao Arpoador. Deixei de olhar os gatos e as gatas malhados e dourados enquanto corria de manhã, o que com certeza me fazia cerrar os olhos diante daquela luz branca e azul, nem ligava. E não tinha a menor vontade de comer. Nesse estado, isso é uma das inúmeras coisas que não se consegue entender e também não importa. Só não sabia onde o erro tinha acontecido, o que me fazia doer a cabeça e provocava noites insones que de tão explicáveis não merecem mais linhas do que as do princípio do livro.
Bem, mas havia também as flores. As flores que deixam de cheirar a prados e passam a lembrar-nos os nossos mortos e, outra vez, o mofo que se acumula nos armários. E os dias que parecem excessivos.
Há músicas que falam disso e que quando tudo passa - porque passa - se tornam muito engraçadas, como quando olhamos uma fotografia dos nossos pais em pleno PREC. Faz parte, estrebuchar, vomitar, viajar até ao deserto. Achar a noite no deserto linda. Derrapar, beber, Porque el alma prende fuego cuando deja de amar, ver filmes quase tão doentios como a realidade. Ou ficar na praia olhando o rasto branco dos aviões da ponte aérea Rio-São Paulo e vir a correr até casa só para poder escrever poesia sobre a beleza das balas que atravessam o Vidigal e chegam à Praça Floriano Peixoto."
Mónica Marques - Transa Atlântica

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