segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Barroco Tropical

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"Abysmos, assim grafado, lembrando-me do que escreveu o poeta português Teixeira de Pascoaes quando em 1911, por força de um novo sistema ortográfico, se insurgiu contra a defenestração do Y: "Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mistério. Escrevê-la com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformá-lo numa superfície banal." Comecei a chamar-lhe Rainha dos Abysmos porque Kianda me provocou um dia, durante uma breve discussão, insistindo na ideia de que nos separava um metafórico abismo à beira do qual gostava de se passear. "Tu, pelo contrário, tens alma de pequeno-burguês", assegurou-me, muito séria, "és um homem bom. Demasiado bom. Não conseguirias viver comigo. Eu sou atraída pelos cachorros vadios, por todo o tipo de loucos e de gente sem futuro." Respondi-lhe, tentando soar trocista, que ela era, sozinha, todos os meus abismos. A verdade é que me sentia caindo por eles desde aquela manhã, no Rio de Janeiro, em que a ouvira dizer, humedecendo os lábios com a língua: "Mais perto não me parece seguro." Proclamei-a então a minha Rainha dos Abysmos."
José Eduardo Agualusa - Barroco Tropical

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